Categoria: Esteiros

Grandes Livros – «Esteiros» de Soeiro Pereira Gomes

No final de 2011 escreveu-se três posts aqui no blog sobre Esteiros.

Este documento feito pela RTP que agora partilho (clicar na imagem abaixo), serve para espicaçar novamente para a leitura deste grande livro, um dos que mais gostei de ler.

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O vídeo dá um contexto histórico que não foi feito aqui nos textos do blog. Também localiza no espaço, em Alhandra, a realidade em que se baseia o livro, algo que em post passado só se referira ter sido algures junto ao Tejo. De resto, muito mais factos interessantes não escrevo, mas são revelados pelo documentário da RTP.

Fica o convite a clicar na imagem acima para visionar o vídeo.

O Gordo (2/2) – A Natureza de Classe

No post anterior referiu-se a enorme tragédia provocada pelas inundações em Esteiros. Vamos prosseguir onde deixamos a transcrição, aquando a desvalorização da tragédia por parte do Gordo:

– Ora, meu amigo. Isto é um lago, comparado com as inundações que eu já vi na América. Ai, sim. Povoações arrasadas, campos totalmente devastados, centenas de mortos…
O amigo interrompeu a digressão. – Em todo o caso há prejuízos de milhares de contos…
– Sim, convenho que é um rombo, em lavoura pobre como a nossa.
– O Meneses de Sá, coitado, perde mais de setecentos contos. Diz-se até que vai perder o palacete no Estoril.
O sujeito gordo calou-se por instantes. (…) Pensava salvar o seu amigo proprietário, comprando-lhe o palacete.

Diz-se que na tragédia há um conjunto de oportunidades para aproveitar. Tal como se ouve frequentemente falar nas oportunidades que a crise proporciona. O Gordo, à semelhança dos especuladores financeiros, ronda atento a tragédia procurando uma presa que ao detectar fixa como um abutre. Ele preparava-se para fazer uma espécie de «ajuda externa» ao “tio” Meneses de Sá.

Mas,

– Coitado do Meneses! Seiscentos contos…
– O Estado deve ajuda-lo – explicou outro. – Fala-se de numa grande reunião de lavradores.

E por fim, talvez não seja precisa a «ajuda» do Gordo, e fica esclarecido a natureza de classe do Estado, pois este será instrumentalizado para ajudar os lavradores, latifundiários, enquanto o resto da população perderá tudo do pouco que tinha nas inundações. É semelhante ao que se faz hoje com os bancos, imagino que os latifúndios eram demasiado grandes para cair, e era preciso acalmar os latifundiários.

O Gordo (1/2) – Erro de Paralaxe.

Em Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes:

O caudal barrento do rio arrastava fardos de palha, animais e lágrimas. E o homem daqueles sítios, alheio às conversas, nada mais via que luto à sua frente. (…)
Agora era um senhor gordo, com máquina fotográfica a tiracolo, quem apreciava o panorama.
– Afinal, onde está a maravilha?
– É grandioso, há-de concordar.
– Ora, meu amigo. Isto é um lago, comparado com as inundações que eu já vi na América. Ai, sim. Povoações arrasadas, campos totalmente devastados, centenas de mortos…

Em Esteiros, onde os personagens vivem mal remediados e subnutridos, o surgimento de um personagem gordo é sinal de que se tratará dum burguês. Se no post anterior fez-se referência a uma nota que alguém fizera dizendo que «ser menino era um “luxo” de classe», neste caso, acrescentar-se-á que ser-se gordo era um “luxo” de classe.

Faz pensar no contra-senso que existe hoje quanto à nossa alimentação e a moda dos ginásios. Muitos se alimentam de maneira a ter excesso de peso, enquanto contrariam isso por via de exercício extra auto-infligido. É uma grande quantidade de recursos alimentares (e não só) gastos, queimados em ginásios; para além muitas outras considerações que se poderia acrescentar, mas ficam aqui por referir.

Outro pormenor, em relação ao transcrito, é a diferença de perspectiva entre o “homem do sítio” e o Gordo perante as inundações. Enquanto o primeiro via uma tragédia, o segundo via algo maravilhoso – mas não tanto como noutras cheias lá na sua América. Portanto, mesmo quando a tragédia era na sua terra, no seu sítio, o Gordo achava-a maravilhosa. Logo, a diferença de perspectivas entre o “homem do sítio” e o Gordo não está apenas na distância da origem destes em relação à tragédia, mas é sobretudo uma perspectiva de classe.

Ora, um dos extremos da tragédia é a guerra. Recordo-me de ver há vários anos na RTP, sobre uma das guerras contra o Iraque, um programa em que Nuno Rogeiro levou brinquedos de plástico para elucidar o telespectador como era a guerra. Ele tinha réplicas em miniatura de aviões, misseis e outras coisas mais em cima da mesa e ia municiando de saber o telespectador sobre as maravilhas tecnológicas naquela guerra. Mais do que fazer o culto à tecnologia, naquele programa pretendia-se convencer a quem o via de que a guerra seria “limpa”, sem sangue civil. A guerra pela TV era espectacular e todos se lembram dos directos com câmaras de visão nocturna a captarem… não a tragédia, mas as luzes! Pelo menos, é aquilo de que melhor me recordo. Na época, era ainda menino, usufruía do facto de isso ter deixado de ser um “luxo” e passado a ser um direito humano satisfeito, e como menino que era, facilmente me deixei manipular pelos média em prol daquela guerra (de sonho).

Observando a guerra de longe escapa-nos a dura realidade das suas vítimas, tal como ao Gordo feito turista perante as inundações nos Esteiros. A tragédia é diminuída a meras luzes ou a um mero lago, isto é, ela fica reduzida à sua aparência, a estética. Mas há aqui diferenças nesta (falsa) analogia, pois enquanto o telespectador da RTP é iludido quanto à realidade, o Gordo ilude-se ele próprio por falta de sensibilidade e inteligência, ou então é o que é, e é mesmo um filho da puta.

Esta visão da tragédia reduzida à aparência, a estética, foi-me de certa forma introduzida por uma obra de Walter Benjamin. Li-a naquela altura sem as capacidades para absorver o seu conteúdo, mas uma passagem me ficou. Ele citou um excerto dum manifesto que dizia:

(…) nos manifestamos contra o facto de se designar a guerra como anti-estética, (…) por conseguinte declaramos: (…) a guerra é bela porque fundamenta o domínio homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente com as orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa sinfonia o fogo das espingardas, dos canhões, dos cessar-fogos, os perfumes e os odores de putrefacção. A guerra é bela porque cria novas arquitecturas, como a dos grandes tanques, a da geometria de aviões em formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder e muitas outras… poetas e artistas do futurismo… lembrai-vos destes fundamentos de uma estética da guerra, para que a vossa luta possa iluminar uma nova poesia e uma nova escultura!”

A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin (1955).

O excerto é do Manifesto Futurista, escrito por Marinetti, e o conteúdo de ideologia fascista. Quando li isto lembrei imediatamente da Guerra do Golfo e da cena surrealista de Nuno Rogeiro a brincar em directo na TV, maravilhado pela tecnologia de ponta em parelha com a guerra. E agora, lendo Esteiros, ligo tudo isto também ao Gordo que fotografa a beleza das inundações sôfrego por não serem maiores e mais bonitas.

Walter Benjamin após citar o Manifesto Futurista conclui:

“Fiat ars – pereat mundus”, diz o fascismo (…). Isto é, evidentemente, a consumação da “l’art pour l’art”. A humanidade que, outrora, com Homero, era um objecto de contemplação para os deuses no Olimpo, é agora objecto de autocontemplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assistir à sua própria destruição, como a um prazer estético de primeiro plano. É isto o que se passa com a estética da política, praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.

A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin (1955).

Penso poder acrescentar que o comunismo responde-lhe com a politização da arte e não só, mas de tudo, inclusivamente da tragédia. Por exemplo, no sismo no Haiti onde milhares morreram, os comunistas (e não só) lembraram imediatamente que o sismo teve as consequências que teve por causa da imensa pobreza naquele país. Não era uma consequência do azar ou dum sismo excepcionalmente intenso, mas (também) de causas sociais, logo políticas.

Cabe a nós procurar observar os acontecimentos cada vez mais a fundo e não nos ficarmos pela aparência, e para isso é necessário deixar de ver apenas com olhos de “gordos” (de burgueses). Assim libertarmo-nos da nossa mentalidade submissa.

«Ser menino é um “luxo” de classe»

Joaquim Soeiro Pereira Gomes nasceu em 1909 na aldeia de Gestaçô, concelho de Baião, no seio de uma família de pequenos agricultores do Douro. Em Novembro de 1941 publicou «Esteiros» pela editora Sírius com ilustrações de Álvaro Cunhal. Autor ligado ao neo-realismo português e militante do Partido Comunista Português. Morreu em 1949. [1]

A Dedicatória

O livro por onde leio foi comprado num alfarrabista. Um anterior dono sublinhou e escreveu no livro alguns apontamentos que me fazem imaginar de que se tratava duma professora que teve como tarefa leccionar esta obra. Ela assinou o livro e colocou a data de 1976… [2]

A causa deste post é precisamente um desses sublinhados com uma nota ao lado logo no início do livro. Soeiro Pereira Gomes escreveu:

Para os filhos dos homens que nunca foram meninos escrevi este livro.

Além de sublinhar, escreveu a leitora a seguinte nota:

Dedicatória.
Dedicatório colectivo.
Ser menino é um “luxo” de classe.

[3]

E assim era, ser menino era um “luxo” de classe. Voltará a sê-lo neste país?

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[1] Fonte: «Avante!» Nº 1359 – 16.Dezembro.1999.
[2] Anita, Maio de 1976.
[3] Jerónimo de Sousa, no Alta Definição da SIC (emitido em 20-11-2011).