O Gordo (1/2) – Erro de Paralaxe.

Em Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes:

O caudal barrento do rio arrastava fardos de palha, animais e lágrimas. E o homem daqueles sítios, alheio às conversas, nada mais via que luto à sua frente. (…)
Agora era um senhor gordo, com máquina fotográfica a tiracolo, quem apreciava o panorama.
– Afinal, onde está a maravilha?
– É grandioso, há-de concordar.
– Ora, meu amigo. Isto é um lago, comparado com as inundações que eu já vi na América. Ai, sim. Povoações arrasadas, campos totalmente devastados, centenas de mortos…

Em Esteiros, onde os personagens vivem mal remediados e subnutridos, o surgimento de um personagem gordo é sinal de que se tratará dum burguês. Se no post anterior fez-se referência a uma nota que alguém fizera dizendo que «ser menino era um “luxo” de classe», neste caso, acrescentar-se-á que ser-se gordo era um “luxo” de classe.

Faz pensar no contra-senso que existe hoje quanto à nossa alimentação e a moda dos ginásios. Muitos se alimentam de maneira a ter excesso de peso, enquanto contrariam isso por via de exercício extra auto-infligido. É uma grande quantidade de recursos alimentares (e não só) gastos, queimados em ginásios; para além muitas outras considerações que se poderia acrescentar, mas ficam aqui por referir.

Outro pormenor, em relação ao transcrito, é a diferença de perspectiva entre o “homem do sítio” e o Gordo perante as inundações. Enquanto o primeiro via uma tragédia, o segundo via algo maravilhoso – mas não tanto como noutras cheias lá na sua América. Portanto, mesmo quando a tragédia era na sua terra, no seu sítio, o Gordo achava-a maravilhosa. Logo, a diferença de perspectivas entre o “homem do sítio” e o Gordo não está apenas na distância da origem destes em relação à tragédia, mas é sobretudo uma perspectiva de classe.

Ora, um dos extremos da tragédia é a guerra. Recordo-me de ver há vários anos na RTP, sobre uma das guerras contra o Iraque, um programa em que Nuno Rogeiro levou brinquedos de plástico para elucidar o telespectador como era a guerra. Ele tinha réplicas em miniatura de aviões, misseis e outras coisas mais em cima da mesa e ia municiando de saber o telespectador sobre as maravilhas tecnológicas naquela guerra. Mais do que fazer o culto à tecnologia, naquele programa pretendia-se convencer a quem o via de que a guerra seria “limpa”, sem sangue civil. A guerra pela TV era espectacular e todos se lembram dos directos com câmaras de visão nocturna a captarem… não a tragédia, mas as luzes! Pelo menos, é aquilo de que melhor me recordo. Na época, era ainda menino, usufruía do facto de isso ter deixado de ser um “luxo” e passado a ser um direito humano satisfeito, e como menino que era, facilmente me deixei manipular pelos média em prol daquela guerra (de sonho).

Observando a guerra de longe escapa-nos a dura realidade das suas vítimas, tal como ao Gordo feito turista perante as inundações nos Esteiros. A tragédia é diminuída a meras luzes ou a um mero lago, isto é, ela fica reduzida à sua aparência, a estética. Mas há aqui diferenças nesta (falsa) analogia, pois enquanto o telespectador da RTP é iludido quanto à realidade, o Gordo ilude-se ele próprio por falta de sensibilidade e inteligência, ou então é o que é, e é mesmo um filho da puta.

Esta visão da tragédia reduzida à aparência, a estética, foi-me de certa forma introduzida por uma obra de Walter Benjamin. Li-a naquela altura sem as capacidades para absorver o seu conteúdo, mas uma passagem me ficou. Ele citou um excerto dum manifesto que dizia:

(…) nos manifestamos contra o facto de se designar a guerra como anti-estética, (…) por conseguinte declaramos: (…) a guerra é bela porque fundamenta o domínio homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente com as orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa sinfonia o fogo das espingardas, dos canhões, dos cessar-fogos, os perfumes e os odores de putrefacção. A guerra é bela porque cria novas arquitecturas, como a dos grandes tanques, a da geometria de aviões em formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder e muitas outras… poetas e artistas do futurismo… lembrai-vos destes fundamentos de uma estética da guerra, para que a vossa luta possa iluminar uma nova poesia e uma nova escultura!”

A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin (1955).

O excerto é do Manifesto Futurista, escrito por Marinetti, e o conteúdo de ideologia fascista. Quando li isto lembrei imediatamente da Guerra do Golfo e da cena surrealista de Nuno Rogeiro a brincar em directo na TV, maravilhado pela tecnologia de ponta em parelha com a guerra. E agora, lendo Esteiros, ligo tudo isto também ao Gordo que fotografa a beleza das inundações sôfrego por não serem maiores e mais bonitas.

Walter Benjamin após citar o Manifesto Futurista conclui:

“Fiat ars – pereat mundus”, diz o fascismo (…). Isto é, evidentemente, a consumação da “l’art pour l’art”. A humanidade que, outrora, com Homero, era um objecto de contemplação para os deuses no Olimpo, é agora objecto de autocontemplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assistir à sua própria destruição, como a um prazer estético de primeiro plano. É isto o que se passa com a estética da política, praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.

A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin (1955).

Penso poder acrescentar que o comunismo responde-lhe com a politização da arte e não só, mas de tudo, inclusivamente da tragédia. Por exemplo, no sismo no Haiti onde milhares morreram, os comunistas (e não só) lembraram imediatamente que o sismo teve as consequências que teve por causa da imensa pobreza naquele país. Não era uma consequência do azar ou dum sismo excepcionalmente intenso, mas (também) de causas sociais, logo políticas.

Cabe a nós procurar observar os acontecimentos cada vez mais a fundo e não nos ficarmos pela aparência, e para isso é necessário deixar de ver apenas com olhos de “gordos” (de burgueses). Assim libertarmo-nos da nossa mentalidade submissa.

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