Saramago é para mim uma figura tutelar e a sua morte deixou-me profundamente desolado. Fiquei fora de mim, incapaz de me concentrar no que estava a fazer. Talvez se reveja aqui um lugar comum no falecimento de alguma figura pública, mas foi isto: fiquei absorto na recordação do imenso prazer que os seus grandes livros me proporcionaram e inquieto com o quanto estariam a fervilhar os actores mediáticos em torno desta efeméride (os jornais e revistas a preparem os cadernos especiais e as capas, os políticos as condolências hipócritas, o governo nem quero ouvir).
Não desejava fazer mais um post a assinalar um acontecimento, a reverenciar o funcionamento aos sacões do nosso quotidiano. Nem pretendo assumir a defesa da vida e das opções ideológicas e práticas de Saramago. O que me marcou nele foi o escritor e era isso que queria evocar e divulgar um pouco.
Foi um autor de vanguarda: a sua forma literária (tantas vezes gozada por alunos cábulas e equivalentes adultos), tão contemporânea ao desconstruir efectivamente o ritmo clássico da prosa. Simultaneamente, a sua escrita adquiria um tom barroco ao estender o tempo da narração e ao multiplicar as figuras de estilo e as referências eruditas. A História foi por ele descascada e corrompida; por isso torna-se mais verdadeira.
“O “Levantado do Chão” conta a vida da minha família”: Saramago fez-nos também acreditar na memória dos afectos. E reversivelmente, com o seu mote crítico, no futuro do seu povo. Choramos com esperança.
É que a vivência retratada nos seus romances é sempre em tensão, mesmo quando as personagens não são directamente protagonistas: as decisões que tomam e o amor que exprimem é necessariamente um acto extremo e, nesse sentido, consciente. Assim, a vertigem ou o atropelo das palavras e da sintaxe (não é o termo correcto) na escrita de José Saramago é uno com o sublime retrato da condição humana.
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Isto foram apenas linhas para uma análise futura – haja tempo e saber! – e não me refiro à obra mais recente de Saramago, uma vez que não a conheço tão bem ou não gosto dela assim tanto. Sobre isto, permito-me umas notas mais.
Há poucos dias tinha assinalado a seguinte citação no blog da sua (polémica) fundação:
Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais. – José Saramago, “Levantado do Chão”
Até encaixo esta longa frase no que disse acima. Mas o meu propósito inicial era de utilizar este dédalo do dizer e do pensar num post acerca das Mitologias de Roland Barthes.
Ora, estoutro autor, numa entrevista em 1964 finaliza com a seguinte tirada uma crítica “à sacralização do real” esperada na literatura progressista:
Julgo que se poderia dizer que a literatura é Orfeu regressando dos Infernos; na medida em vai a direito, sabendo, contudo que conduz alguém, o real que está atrás de si e que retira pouco a pouco do inominado, respira, anda, vive e dirige-se para a claridade de um sentido; mas mal se volta para o que ama, já não fica nas suas mãos senão um sentido nomeado, isto é, um sentido morto. – Roland Barthes, in Literatura e significado, “Ensaios Críticos”
Acho esta formulação tão bela quanto acertada. E nem a pretendo opor a críticas em que não alinho acerca de defecções e apostasias. Uso-a precisamente para avaliar a qualidade “literária” de Saramago: se me arrefecem as suas obras tardias (ia escrever mais recentes, e merda de dia) é pelo que foi nomeado em excesso e não por se ter perdido do real.
É a minha opinião. Em termos algo cerrados, admito, mas não estou para pactuar com o circo mediático deste fim de semana. Recuso-me a colocar o Saramago numa estante ou num panteão! Desejo continuar a ser guiado pela sua obra inesquecível: para o bem ou para o mal, foi parte do caminho que percorri e continuarei a trilhar.