Os Avanços Revolucionários na América Latina – Remy Herrera

O livro em causa, editado recentemente pelas edições Avante!, é da autoria de Remy Herrera, um professor universitário francês, bastante regular nas suas contribuições em sites de informação alternativa. Portanto, o que está aqui em causa é a perspectiva, de alguém informado e com um forte comprometimento de classe, sobre os acontecimentos políticos e sociais actualmente em curso na América Latina.

É evidente não é possível resumir e comentar em cerca de 140 páginas todo o movimento complexo referido. Afinal, trata-se de um território tão vasto, com tantos povos e histórias (por vezes que entre-cruzam fortemente), que merece uma análise bem cuidada e informada. E mesmo o autor não consegue restringir o seu texto à actualidade, uma vez que esta é devedora dos acontecimentos que a antecederam e, também, porque há lições importantes a retirar do passado destes povos.

Desta forma, não é objectivo deste post dar conta de todas as análises sustentadas no livro: vou apenas focar-me na perspectiva geral. Eventualmente, retornaremos a este livro como referência para comentar a situação ou a história de algum país latino-americano.

O percurso dos povos da América Latina

A estrutura do livro revela o esquema de análise proposto por Remy Herrera. Após uma introdução onde delineiam os objectivos e a pertinência deste livro, é revista e comentada parte da história (política, social e económica) de praticamente cada país da América Latina. A sua ordem, contudo, não é alfabética; o autor propõe uma ordenação dos países consoante o grau de emancipação que atribui aos seus povos.

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Assim e em primeiro lugar, a Cuba revolucionária é apresentada como um país distinto de todos os outros. Assinala-se como uma vitória a resistência da Revolução Cubana a tantos acontecimentos que a fizeram e fazem perigar, como foi exemplo o Período Especial, após a derrota do socialismo na URSS e países do Leste europeu. Remy Herrera defende que Cuba se encontra a construir uma sociedade voltada para as necessidades do ser humano em vez das dos mercados; aliás, escreve que se tratam de “mecanismos de mercado dominados, sem regresso ao capitalismo”. Cuba é só por si – e justamente – um capítulo neste livro; mas atente-se que se a “aliança do martismo ao marxismo” é uma lição para os povos do continente, a Revolução Cubana não gerou um modelo (não é exportável, como é uso dizer-se).

Logo após, vem o grupo de países cujos povos e líderes mais se comprometeram com a transição para o socialismo: Venezuela, Bolívia e Equador. Como resposta dos povos à devastação neo-liberal, Remy Herrera aponta a eleição de lideranças preocupadas em mais do que melhorar a redistribuição de riqueza. Neste grupo estão em curso Revoluções que, com as suas diferenças, visam a transformação social. São sinais de progresso as missões sociais (educação, saúde, alimentação), o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas ou a nacionalização dos principais sectores económicos (hidrocarbonetos, em especial) e a contestação às odiosas dívidas contraídas pelos governos (e ditaduras) neo-liberais ao longo das últimas décadas. Contudo, nestes países estão bem acesas as lutas de classes pelo controlo do Estado – e não apenas nas eleições, como demonstra o golpe de Estado na Venezuela em 2002. E isto sem esquecer o assédio imperialistas com as preocupações explícitas dos governantes dos EUA em travar estes processos revolucionários.

Continuando a caminhar para a direita, vêm os países em que existem movimentos sociais em luta, mas cujos governos Herrera caracteriza como “progressistas” – com as aspas. Brasil, Argentina são os principais. A sua política tem sido de restaurar as forças do capitalismo e a subjugação dos países ao mercado e à finança global, sob uma capa de populismo que captura as massas desorganizadas. O Brasil de Lula é um exemplo do compromisso das classes possidentes, que conservam o poder “sem confrontação de classes”: o governo do PT alargou a assistência às camadas mais pobres (veja-se o programa Bolsa Família), mas fê-lo de forma contingente e de futuro incerto; contudo, teve uma preocupação inexcedível com o pagamento das dívidas ao FMI, aumentando o serviço de dívidas do Estado brasileiro. O aumento da solvabilidade financeira do Brasil é um requisito dos oligopólios internacionais, mas tem um custo social pesado que impede o crescimento dos produtores nacionais brasileiros, segundo Remy Herrera. Na opinião do autor, o movimento social encontra-se dividido e desorganizado pela estratégia da grande burguesia local, uma vez que frajas da esquerda moderada participaram no governo do país, desgastando a capacidade de transformação do país, nomeadamente através da reforma agrária. No plano internacional, a ambiguidade das posições brasileiras configura um “sub-imperialismo regional brasileiro”.

Virando-se para os países de regimes reaccionários (México, Colômbia, Peru), Herrera não se esquece de ligar o presente destes países à influência dos EUA e às lutas políticas que neles se travam. A ameaça comunista foi ao longo dos anos pretexto para intervenções militares mais ou menos encapotadas. A violência da repressão gerou nestes países alguns movimentos militares rebeldes: FARC-EP, EZLN ou o Sendero Luminoso. A história destas guerrilhas é brevemente focada no livro, mas a sua trajectória torna-se clara no panorama político dos seus países.

Finalmente, é posta em relevo a derrota da ALCA durante os anos 00 e os primeiros passos da ALBA. A construção de um mundo multi-polar é discutida face às (difíceis?) alianças entre países latino-americanos assim como a submissão da região ao FMI e à estratégia político-militar dos EUA. Quando se começa a falar da necessidade de governos supra-nacionais (seja para controlar o orçamento de um Estado como para dirigir operações militares), acho particularmente interessante que o autor deste livro nos chame a atenção para as dificuldades e as possibilidades de regionalizações solidárias envolvendo diferentes nações.

A exposição da situação política dos países latino-americanos e a análise do conteúdo de classe dos seus governos é bastante sintética, mas nestes traços gerais apenas exprime ou sistematiza um quadro político em que os comunistas se revêem. É verdade que a situação é flutuante e o livro tenderá a desactualizar-se rapidamente: os termos modestos como a Revolução Cidadã no Equador são tratados decididamente seriam revistos face à tentativa golpista do mês passado e à resposta popular que obteve. Mas também por isso é desejável organizar as ideias e repensar a situação para poder promover/prever a sua evolução.

A solidariedade dos trabalhadores do Norte

No final, Remy Herrera reflecte nos êxitos obtidos pelos povos latino-americanos ao longo dos últimos anos e sublinha que o eixo Cuba-Venezuela foi crucial para dinamizar as conquistas. A América Latina constitui-se como a “única região do mundo onde os povos passaram à ofensiva”, uma “frente anti-imperialista” em conjunto com o “Médio Oriente – Palestina, Iraque e Afeganistão” à cabeça.

As dificuldades dos processos revolucionários assinalam o problema do exercício do poder do Estado após a sua conquista. O contexto socio-políticos da América Latina é muito diferente do nosso, mas Remy Herrera traça o controlo democrático ao serviço dos interesses populares como objectivo para as transformações sociais em curso e prevenção de retrocessos.

O autor alerta ainda para a necessidade de um internacionalismo das organizações partidárias e sindicais dos trabalhadores dos centro do sistema mundial em relação às “lutas populares da periferia”. Não no sentido de aplicar modelos, mas de trocar experiências e, com isso, construir uma frente anti-imperialista (“uma V Internacional?”): afinal, trata-se “de uma e mesma batalha por um mundo radicalmente diferente” que envolve “todos aqueles que opõem à globalização capitalista”.

 

Em jeito de conclusão, trata-se duma excelente síntese da situação política actual na América Latina. A merecer desenvolvimento neste blog, sem dúvida. A escolha dos termos finais são um pouco discutíveis: talvez se deva atribuir ao contexto socio-político francês? (É uma boutade, já que andei para aqui com contextos o post todo.)

Em jeito de curiosidade, o livro termina com uns anexos que enumeram a intervenções políticas e militares dos EUA nos países latino-americanos desde 1774 – trata-se de uma lista não-exaustiva. Em sentido contrário (intervenções militares nos EUA por países latino-americanos) é apontado o ataque mexicano em 1916 à cidade de Columbus no Novo México (que havia sido subtraído ao México na guerra de 1846-48). Esta lista já é exaustiva…

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